
A agricultora Fabiane Lange, 35 anos, ficou vários dias sem poder ir à lavoura no mês de abril devido ao desgaste físico provocado pelas sucessivas sessões de quimioterapia’. Desde junho de 2016, ela divide o tempo entre a lida na plantação e o tratamento para debelar um câncer de mama, descoberto quando estava grávida de seis meses do segundo filho – e aguarda por uma mastectomia agendada para julho. Ela afirma que nunca manuseou agentes químicos, mas tem convicção de que a doença está associada ao contato indireto com os defensivos agrícolas utilizados nas lavouras de soja que circundam a pequena propriedade da família, na localidade de Esquina Progresso, zona rural de Tiradentes do Sul, no Noroeste do estado. “Usam o 2-4D, que é um agrotóxico pesado. Num ambiente onde o nível de contaminação vai para o solo, para a planta, para o pasto que alimenta as vacas, o câncer vem junto”, aponta. A desconfiança da agricultora faz sentido, como evidenciam pesquisas que associam de forma cada vez mais contundente o uso de agrotóxicos à incidência de câncer.
O Rio Grande do Sul deve registrar neste ano 54,8 mil novos casos de câncer, de acordo com estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca). A estatística posiciona o estado no quarto lugar do ranking nacional, liderado por São Paulo (141.250), que tem Rio de Janeiro (62.230) e Minas Gerais (57.590) como os estados com maior ocorrência dos mais diversos tipos de cânceres. Dos casos registrados no RS, 15.570 neoplasias são de pele não melanoma, 8.170 em outras partes do corpo e 6.210 de próstata. Um total de 7.670 dessas ocorrências, de acordo com o Inca, será em Porto Alegre. Em todo o país, o Instituto prevê 600 mil novos casos e projeta igual número para 2019. O cenário da doença é ainda mais delicado se visto por levantamento inédito do Observatório de Oncologia do movimento Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC), em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM). Com base em dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde (MS), o estudo revela que o câncer é a principal causa de mortes em 516 dos 5.570 municípios brasileiros, ou seja, em 10% das cidades. O RS lidera com o maior número de municípios (140) onde o câncer é a primeira causa de morte.

Para a pesquisadora, há uma série de fatores que induzem à cultura dos agrotóxicos. Após os anos 1960, os pacotes de crédito rural obrigam os pequenos produtores a usar uma parte dos recursos para insumos químicos, exemplifica. “O pequeno agricultor é a vítima, não o vilão. É a mesma discussão de muitos anos dos efeitos do tabaco. Os agricultores são induzidos a uma agricultura de dependência química que já passou para a quarta geração, algo difícil de ser quebrado, pois as famílias dependem disso. Uma realidade que precisa ser enfrentada com políticas públicas”, sinaliza.
PERMISSIVIDADE – A lei de agrotóxicos, de 1989, estabelece que o registro de uma substância é permanente, ou seja, nunca caduca, permitindo, no máximo, que o produto seja reavaliado. Foi o que ocorreu recentemente com o Paraquat, ingrediente ativo mutagênico e indutor do Mal de Parkinson, que foi banido em 2017 e voltou a ser liberado pela Anvisa. “O projeto político desse governo é ampliar ainda mais a permissividade. O Atlas mostra que para algumas culturas aumentamos de 30% a 50% a quantidade de agrotóxicos permitidos e que são proibidos na União Europeia. Nos citros tínhamos 70 proibidos, agora temos 116. Na soja, eram 120, agora 150. Varia no mínimo 30% a mais”. Enquanto isso, tramita no Congresso o “Pacote do Veneno”, um conjunto de projetos apensados que revogam a atual Lei dos Agrotóxicos e facilitam o registro de substâncias, inclusive aquelas banidas em outros países.
Transtornos mentais, depressão e câncer
A pesquisadora do Inca e uma das autoras do Dossiê Abrasco – Os impactos dos Agrotóxicos na Saúde, a toxicologista Márcia Sarpa Campos Mello, que investiga desde 2001 as conexões entre câncer e agrotóxicos em populações rurais, afirma que dados de estudos experimentais confirmam a relação direta da exposição a esses produtos no desenvolvimento de tumores e de câncer em seres humanos. “Há alguns tipos mais comuns relacionados a essa exposição, como o linfoma de Hodgkins, que não é um tumor sólido, mas um câncer relacionado ao sistema linfático. E também dados que indicam aparecimento de câncer de mama e próstata a partir da exposição contínua no ambiente de trabalho ou então a exposição ambiental de pessoas que moram perto de lavouras que usam esses agrotóxicos”, afirma.
O trabalho de Márcia é in loco, e consiste em uma investigação epidemiológica, por meio de questionários e também em avaliação clínica e laboratorial, através da coleta de sangue dos trabalhadores para verificar o aparecimento de danos ao DNA. “E o dano ao DNA é a primeira etapa no desenvolvimento de um câncer futuro. Fazemos esse monitoramento dos trabalhadores, para saber se já há algum dano ao longo do tempo, e para afastá-los, conscientizar para que parem de usar agrotóxicos e partam para uma produção mais ecológica”, explica.
Outro efeito nocivo dos agrotóxicos, enfatiza Márcia, é a desregulação endócrina, já comprovada em animais. “Essa desregulação dos hormônios está diretamente ligada a alguns tipos de câncer que têm ligação com o sistema hormonal. Por exemplo, o câncer de mama, que está ligado à exposição dos estrógenos. Alguns agrotóxicos têm potencial de mimetizar, imitar o efeito do estrógeno”, esclarece. Em 2016 o Inca realizou uma investigação conjunta com a prefeitura de Dom Feliciano, município de 15 mil habitantes, em que 86% do PIB provêm da produção de fumo, na qual foram entrevistados 800 trabalhadores de plantações de tabaco. “A partir do aumento de casos de transtornos mentais e depressão, encontramos resultados que associaram isso à exposição aos agrotóxicos”, resume.
Agrotóxicos: uma morte a cada dois dias e meio
O Mapa Brasil – Intoxicação de Agrotóxico de Uso Agrícola por Unidade da Federação, escancara que mais de 25 mil intoxicações foram registradas no período 2007 a 2014, totalizando 3.125 ao ano ou oito intoxicações por dia. O saldo dessas intoxicações: 1.186 mortes, 148 por ano ou uma a cada dois dias e meio. Entre os mortos nesse período de sete anos estão 343 bebês, que materializam a pior fotografia do impacto do uso de agrotóxicos no Brasil. As estatísticas, no entanto, estão subestimadas. Os pesquisadores acreditam que para cada caso registrado, 50 outros não são notificados, o que permite calcular que a soma de registros de intoxicação por agrotóxicos alcançaria 1,250 milhão de ocorrências.
Na quinta posição do ranking de maiores negociadores de agrotóxicos, o RS, até 2013, comercializou 104 milhões de quilos desses produtos para 8.761.460 hectares de área plantada, na proporção 11,91 quilos por hectare, diz o Mapa Brasil. O Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs) apurou 112 óbitos no RS entre os anos de 2010 e 2016, envolvendo agrotóxicos e pesticidas. Do total de mortes, 91 foram por autointoxicação. Os dados de 2017 ainda estão sendo compilados. As causas mais comuns são autointoxicação e envenenamento por exposição intencional ou não aos produtos. Os locais para essas ocorrências variam de residências, áreas coletivas, ruas, estradas, comércios e fazendas.

Fonte: Extra Classe
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário. Sua opinião é muito importante para o blog.